terça-feira, 1 de abril de 2008

O caldeirão da Cerâmica

Cena cultural toma palco da chacina.

Por Flávia Ferreira
Fotos - Mazé Mixo

Ainda se podia sentir o cheiro de pólvora na Cerâmica quando a lona cultural da Escola Municipal Douglas Brasil abrigou o Nós do Morro, grupo teatral que tirou a favela do Vidigal das páginas policiais e a colocou nos cadernos culturais. Dois anos depois da chegada do grupo, hoje rebatizado como Nós da Baixada, há uma dinâmica cena cultural no bairro marcado pela chacina. “Meus alunos de 12, 13 anos discutem teoria teatral”, orgulha-se Anderson Dias, coordenador artístico do núcleo.

A criação dessa cena cultural não foi nada fácil. Depois de passar pelo árduo processo de seleção e capacitação de 50 profissionais do município de Nova Iguaçu que integrariam o núcleo da Cerâmica, Anderson iniciou o trabalho com uma comunidade disposta a tudo para esquecer a tragédia da noite de 31 de março de 2005. “A gente precisa lembrar para impedir que se repita”, sugeria. Mas o resgate da memória esbarrava nas lágrimas de uma das alunas, que havia perdido um irmão na chacina.

Apesar do estigma, o trabalho evoluiu primeiro para a Escola Municipal Estanislau Ribeiro do Amaral e depois para a própria comunidade, atraindo cerca de 250 jovens para as oficinas agora realizadas em um espaço próprio. Mas já em Fotos e fatos, primeiro espetáculo montado pelo Nós do Morro na Baixada Fluminense, ficou claro que o trabalho na Cerâmica extrapolava o evento cultural. “O trabalho social termina sendo mais importante do que o artístico”, avalia.
Anderson tem dados de sobra para sustentar essa tese. “Além de termos formado um público teatral na Cerâmica, conseguimos sensibilizar o comércio local para financiar nossos espetáculos”, diz. Outro sinal dos novos tempos vividos no palco da chacina foi o Varal Cultural, espaço de experimentação artística onde cada centímetro é disputado pelos artistas da comunidade. “Isso aqui está virando um grande caldeirão cultural”, afirma.
O sucesso da experiência terminou produzindo uma pequena crise no grupo, motivada pelo desejo de profissionalização de alguns integrantes. Anderson não descarta a possibilidade de um novo Cidade de Deus, que deu fama internacional para os atores do núcleo do Vidigal. Mas, apesar do desempenho da atriz Carlinha no comercial produzido para o Bairro-Escola, ele tem medo de colocar o carro na frente dos bois. “Ainda temos um longo caminho pela frente”, afirma. “Tudo que vier será conseqüência de um trabalho bem feito.”

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