quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Conjuntura trágica

OLHA O II IGUACINE AÍ, GENTE


Cantores de rap se inspiram nas mães para enfrentar a “vida loka” na periferia
por Flávia Ferreira

"O que me impressionou e me levou a pesquisar esse tema na academia foi a voz. O estatuto político dessa voz que ganhou as ruas e conquistou as periferias das cidades. Essa voz atravessou as fronteiras e deu um sacolejo em muitos setores da sociedade para além do universo periférico, principalmente em alguns centros acadêmicos sensíveis a temas como esse", foi o que disse Numa Ciro, 59, psicanalista, pesquisadora e artista carioca. Ela é a responsável pela tese que inspirou o Movimento Enraizados a dirigir o documentário "Mães do Hip Hop", que será exibido nesta quinta-feira (27), no Espaço Cultural Sylvio Monteiro.

Esta proposta de tese surgiu enquanto ela escutava rap e, prestando atenção nas letras, observou a incidência com que a palavra mãe aparecia e a força dos referenciais às quais essa palavra estava agregada: luta, luto, solidão, trabalho árduo, divindade, confiança, agradecimento, reconhecimento, lei e colo.

Seu primeiro contato com o Enraizados se deu em uma roda de reflexão sobre os pontos de cultura, num evento patrocinado pelo Itaú Cultural, no Circo Voador, de que ela e Dudu de Morro Agudo participaram. Desde então, ela sempre participa dos eventos promovidos pela ong de Morro Agudo. Essas visitas foram de grande utilidade para sua pesquisa.

Sempre que entrevistava os rappers, ou conversava com as pessoas envolvidas com a cultura Hip Hop, a pesquisadora sempre perguntava sobre a importância da mãe na carreira e na vida que escolhera. "Pergunto por que a mãe comparece como um tema reiteradamente presente nas letras de rap; por que ela é tão citada pelos artistas sempre de forma elogiosa, respeitosa e reverenciada", diz ela.

Por mais que os rappers tenham suas particularidades na forma de escrever, cantar e pensar na letra, em todas as respostas apareceu o reconhecimento pela luta e resistência da maioria dessas mulheres para dar conta sozinha da sobrevivência e educação de seus filhos. "A partir daí, verifiquei que há, nas periferias do Brasil, uma deformação da função materna. À mãe é dada uma sobrecarga, quando ela se torna a única responsável pelos filhos".

Para realizar a pesquisa, Numa Ciro ouvir rappers de vários cantos do mundo, sempre com o mesmo direcionamento. Para sua surpresa, em alguns locais, como Portugal, a mãe não tem a mesma representatividade que no Brasil. Isso se deve ao fato de a mãe não ter a mesma carga de responsabilidades e afazeres, como a tarefa de cuidar solitariamente dos filhos. "É raro os casais terem muitos filhos em Portugal porque lá existe um programa de planejamento familiar e orientação da saúde da família. Assim, percebi que nós vivenciamos no Brasil uma situação de risco em todos os sentidos, a mãe termina sendo uma vítima e ao mesmo tempo heroina nessa conjuntura trágica", explica Numa.

Isto foi só um pouco do que ela pode aprender nessa pesquisa sobre o Hip Hop, pois, para Nomi, o Hip Hop não para, não sossega e não descansa. É um universo que sempre está em mutação, o que torna difícil acompanhar todos os processos de criação que envolve os elementos deste gênero. "Para os meus ouvidos de psicanalista e a minha sensibilidade de artista, essas mudanças que observo com os instrumentos da pesquisa, são aquelas que mais atraem a minha curiosidade", afirma.

Numa fala da mudança no discurso do rap ocorrida nas favelas e periferias da cidade, onde os moradores foram deslocados de sua condição de marginal para a de agente. Mas, durante todo esse processo, descobriu que não são somente os moradores desses locais esquecidos pelos recursos que cresceram a partir do Hip Hop. A própria Numa confessa ter voltado outra pessoa depois desse estudo. De acordo com ela, o Hip Hop lhe permitiu assumir sua cor, a qual ela chama de invisível, pois é uma mulher branca e sente também ser negra.

Todas essas ideias vieram da junção de tudo o que ela aprendera na estrada e com as músicas do grupo Racionais Mc's, que seu irmão aconselhou a ouvir. "Ele me dizia que eu precisava saber sobre esses caras, que era a coisa mais revolucionária, mais interessante que estava acontecendo no cenário musical e cultural de São Paulo. Fiquei com aquilo no pé do ouvido", lembra. "Aos poucos, o Hip Hop foi avançando e não podíamos mais ignorar a sua presença e os efeitos de sua arte de rua, seus investimentos na cultura e as mudanças na forma como a periferia era vista. Entendi que uma voz poderosa surgia desse universo urbano e que o Brasil, a partir desse acontecimento, jamais seria o mesmo".

Numa Ciro diz que a partir do momento que começou a ouvir rap, teve noção da tragédia cotidiana que as periferias enfrentam. Assim, quando entrou para o mestrado em Ciência da Literatura, na UFRJ, não teve dúvidas: o rap seria seu objeto de estudo. Tanto que, em 2003, defendeu a dissertação: “Rap: a crônica poética de um genocídio”. Em 2004, ingressou no doutorado defendendo a mesma temática e, neste ano, em 25 de março, levou para a academia a tese “Nas Quebradas da Voz: o lugar e a mãe na crônica poética do rap”.

Interatividade:
Sua mãe já lhe inspirou a criar alguma arte?

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